sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A Meca e o Plebeu



Saía de casa às 4h da manhã todos os dias. Caminhava por entre a névoa da alvorada, ouvindo apenas o tremor dos próprios lábios, e seus apressados passos.

Sua primeira provação diária era aquele coletivo lotado de seres como ele, a procura do sustento e da manutenção da dura vida. Durante os quarenta minutos do percurso a sua única sensação era a saudade da infância, onde os dias eram mais ensolarados e a neblina cedia espaço para um céu azul radiante. Lembranças já perdidas no tempo e no espaço da labuta diária.

Seu destino temido se aproxima. São cinco horas de uma manhã qualquer, e naquela estação a sua face irá se unir a outras milhares, quase todas sem feições, mas repletas das marcas da vida e ostentando ainda algum esboço persistente de fé.

A cidade antes calada, vazia e preguiçosa, agora acorda fixando seus olhos no plural de sonho, tristeza, acalanto, resignação, esperança e desespero.

Nossa personagem ainda caminha, não ouve mais seus passos, não percebe mais o frio, apenas aguarda a execução da sua sentença diária.

Depois do coletivo, do trem e da caminhada, eis que avista ao longe a Meca – imponente, repressora e transgressora da sensibilidade humana – onde dali a pouco repetirá por horas centenas de vezes o mesmo movimento, a mesma cena usurpadora de ontem, de hoje e do amanhã.

São 7h de uma sexta-feira, e nesse dia nosso anti-herói decide se rebelar contra as imposições do império e da vida. Então corre para a sala de comunicação, abre caminho à base do seu soco inglês, guardado devidamente em sua marmita. Com ele alvejou dois seguranças e três colegas que tentaram impedi-lo de tomar de assalto os microfones que comandam milhares de mentes cotidianamente.

-Atenção repetidores a ordem é parar as máquinas! Parem todas as máquinas, desliguem todos computadores, quebrem os seus cartões de ponto, e saiam da Meca! Vamos sair para o pátio externo, é hora da diversão!

Atônitos, seguranças, patrões e empregados olham horrorizados aquele ser subvertendo qualquer ordem, e mais a frente o golpe final e certeiro:

- Hoje em vez das máquinas, vocês irão ouvir música, do erudito ao popular, de Bach, a Madonna, de Cartola a Villa-Lobos, eu não quero ver ninguém parado, dancem, cantem, vamos rodear e cercar Meca!

A imprensa logo surge em polvorosa ávida por uma entrevista exclusiva com o rebelde do império. A polícia sempre ao lado do poder instituído já cerca os muros de Meca, preparando sua invasão impura e violenta.

Foi quando ao som de “Another Brick In The Wall” do Pink Floyd, que João ouviu sonolento sua Maria gritando:

-Acorda João tá na hora de ir pro trabalho! Já são 4 da manhã!

Com frio, e empunhando seu guarda-chuva, João não parecia o mesmo naquele alvorecer. Despede-se de Maria como fazia todas as manhãs, e segue seu rumo em direção a Meca, com a devoção e a fé de quem necessita de um milagre por dia.

Sorria ao lembrar do seu último trailer, da projeção inconsciente dos seus maiores anseios, e cantarolava canções que naquela madrugada representavam em seu universo a plena liberdade!

João morreu na trágica tarde daquela sexta-feira de janeiro. Ele foi tragado pelo chão no metrô Pinheiros em São Paulo. Foi traído pela cobiça humana, pelo desafeto e desamor ao próximo, pela sagacidade do pequeno grupo que continua a comandar e a usurpar os trabalhadores da grande Meca!

4 comentários:

Sônia Pachelle disse...

Interessante!

O início do seu relato condiz com minha vida de adolescente, levantando cedo, enfrentando chuva, frio, fome, e pobres tempos de discriminação por poder aquisitivo. (aliás isso ainda tem)

Mas foi muito legal ler todinho e não entediar, isso porque és muito inteligente, criativo. Parabéns.

É sempre bom ler e ver seu blog como um todo, boa semana e abraços.

Anônimo disse...

Texto recheado de informações mais ou menos parecidas comigo.
Cada texto q eu leio encontro uma beleza, talvez ñ daquelas encantadoras mas no sentido figurativo transmite uma realidade bastante acentuada.
Parabéns.
Feliz dia do amigo.

Valéria lima disse...

Que louco isso! Você misturou ficção, sonho e fato real, achei lindoo!


BeijooO*

Daniella Ockner disse...

realmente suas palavras definem muito do que se guarda dentro de cada um e, talvez, tenha permanecido em segredo por muito tempo.. Gostei muito! Um beijo =)