Já era noite naquele 9 de novembro do ano da graça de 1989.
Estava em Berlim como alguém que ver cristalizar à sua frente um antigo sonho:
Caía o muro da vergonha, o muro da discórdia.
Era o fim dos blocos, da divisão Leste/Oeste, de um mundo configurado à base da força do pós-guerra.
Muro no Aurélio = parede forte que veda ou protege um recinto ou separa um lugar do outro.
Ruiu o monumento da tirania, uma separação anacrônica comparada somente à idade média. Enfim após 28 anos de cisma acontecia a reunificação da Alemanha.
A multidão festejava junto ao Portão de Brandeburgo o fim de uma era truculenta. Pais e mães pudiam finalmente reencontrar seus filhos e, familiares, até então meros estranhos eram apresentados depois de 28 anos de separação forçada.
O muro naquela noite e nos dias subsequentes transformou-se em uma autêntica passarela de carnaval. Todos dançavam, cantavam e batucavam em cima do que restara da intolerância materializada.
A Berlim de Jesse Owens, atleta medalhista de quatro medalhas de ouro nas olimpíadas de 1936 em plena vigência do regime hitlerista.
A Berlim das Asas do Desejo, “Der Himmel über Berlin” (1987) do cineasta Wim Wenders em seu duelo poético entre o divino e o efêmero.
A cidade de arquitetura arrojada, avenidas largas, prédios consistentes e maciços, atrativos culturais e, esportivos.
A Berlim de “Good Bye, Lenin!” (2003) dirigido por Wolfgang Becker, esta cidade e os seus moradores do leste e oeste martelaram aquele embuste à humanidade até o chão.
Eu imagino Berlim como uma espécie de Oz – colorida o suficiente para quebrar o monocromático de algum resquício de um passado tenebroso.
Imagino a minha Berlim como uma cena de cinema onde um personagem olha o espelho e diz a si mesmo:
-Eu sou alguém livre, preso apenas ao meu próprio vagar.
-Sou um amante sereno, um amigo afável e também difícil.
- Sou ocioso por vocação e sonhador por natureza.
-Sou contemplativo na medida do olhar – e não consigo enxergar Berlim (e a vida) sem a existência da poesia.
Pois lá está Berlim e já posso avista - lá:
William Shakespeare em pé sobre o Portão de Brandemburgo, o nosso guardião dos conceitos universais espia a multidão célere no seu vai-e- vem tresloucado.
Viro a rua e dou de cara com Clarice Lispector sentada no Café da Esquina.
Vou a um jogo do Hertha Berlin no Estádio Olímpico, e encontro com Nelson Rodrigues na arquibancada. Furioso, polêmico e intempestivo como sempre:
-Falta arte, falta sexo neste gramado verde!
Diria ele indignado com o futebol contemporâneo.
Kremlin, Berlim
Só pra te ver
E poder rir
Luzes, jasmim
Meu coração, vaso quebrado
Ilusão, fugir...
Nos meus sonhos Djavan surgiria cantando Topázio em meio ao inverno, da bela Berlim.