Há um relato de voz naquela voz, tão retorcida voz, toda ela espanto. o corpo que é voz tem um esgar que deixa de ser corpo e é só voz. se munch se dissesse, rediria a voz candente, noite de gravura, que é gravura e voz que firma a tela. intensos tão meandros destes traços que num itálico do grito a fala sente o homem ser só grito, sem mais homem. Romério Rômulo Vitrola: Pink Floyd - Great Gig in the Sky
Flutuando sob as nuvens Memorias vem para me encontrar agora No espaço entre o paraíso E o canto de algum campo estrangeiro Eu tive um sonho Eu tive um sonho
Provavelmente era um sonho de paz...
Trilha Sonora Artista: Pink Floyd Música: The Gunner's Dream
Há um relato de voz naquela voz,
tão retorcida voz, toda ela espanto.
o corpo que é voz tem um esgar
que deixa de ser corpo e é só voz.
se munch se dissesse, rediria
a voz candente, noite de gravura,
que é gravura e voz que firma a tela.
intensos tão meandros destes traços
que num itálico do grito a fala sente
o homem ser só grito, sem mais homem.
"O tempo é um rato roedor das cousas, que as diminuí ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto."
Machado de Assis
De relance, por entre o espelho, pela primeira vez em minha vida eu antevi o caos que denominamos de tempo. Isto me lembra o longa, “O Curioso Caso de Benjamin Button”.
Ali à minha espreita o ciclo natural da vida: pai e filho num quase close, em um plano retilíneo nem aberto e, nem fechado.
O espelho de um hospital pode revelar o quanto de humano existe, ou não, dentro de cada um de nós: “eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista/o tempo não pára no entanto ele nunca envelhece”.
E nessa analogia entre tempo, caos, vida e morte, estamos nós, aqui e agora.
“Algumas pessoas nascem para se sentarem à beira do rio. Algumas são atingidas por raios. Algumas tem ouvido para a música. Algumas são artistas. Algumas nadam. Algumas percebem os botões. Algumas conhecem Shakespeare. Algumas são mães. E algumas pessoas... dançam”.
Se ontem fui carregado no colo, talvez agora seja a hora de dar suporte a quem outrora me conduzia.
E de repente me bateu uma saudade desta música. Do clima espacial, cósmico, estranho e ao mesmo tempo arrebatador que ela inspira. Queria poder ouvir novamente este sax flutuando e, então levitar por entre as notas musicais de “Us And Them”.
E, com ela dormir e sonhar... sonhar...
Trilha Sonora Artista: Pink Floyd Música: Us And Them
Saía de casa às 4h da manhã todos os dias. Caminhava por entre a névoa da alvorada, ouvindo apenas o tremor dos próprios lábios, e seus apressados passos.
Sua primeira provação diária era aquele coletivo lotado de seres como ele, a procura do sustento e da manutenção da dura vida. Durante os quarenta minutos do percurso a sua única sensação era a saudade da infância, onde os dias eram mais ensolarados e a neblina cedia espaço para um céu azul radiante. Lembranças já perdidas no tempo e no espaço da labuta diária.
Seu destino temido se aproxima. São cinco horas de uma manhã qualquer, e naquela estação a sua face irá se unir a outras milhares, quase todas sem feições, mas repletas das marcas da vida e ostentando ainda algum esboço persistente de fé.
A cidade antes calada, vazia e preguiçosa, agora acorda fixando seus olhos no plural de sonho, tristeza, acalanto, resignação, esperança e desespero.
Nossa personagem ainda caminha, não ouve mais seus passos, não percebe mais o frio, apenas aguarda a execução da sua sentença diária.
Depois do coletivo, do trem e da caminhada, eis que avista ao longe a Meca – imponente, repressora e transgressora da sensibilidade humana – onde dali a pouco repetirá por horas centenas de vezes o mesmo movimento, a mesma cena usurpadora de ontem, de hoje e do amanhã.
São 7h de uma sexta-feira, e nesse dia nosso anti-herói decide se rebelar contra as imposições do império e da vida. Então corre para a sala de comunicação, abre caminho à base do seu soco inglês, guardado devidamente em sua marmita. Com ele alvejou dois seguranças e três colegas que tentaram impedi-lo de tomar de assalto os microfones que comandam milhares de mentes cotidianamente.
-Atenção repetidores a ordem é parar as máquinas! Parem todas as máquinas, desliguem todos computadores, quebrem os seus cartões de ponto, e saiam da Meca! Vamos sair para o pátio externo, é hora da diversão!
Atônitos, seguranças, patrões e empregados olham horrorizados aquele ser subvertendo qualquer ordem, e mais a frente o golpe final e certeiro:
- Hoje em vez das máquinas, vocês irão ouvir música, do erudito ao popular, de Bach, a Madonna, de Cartola a Villa-Lobos, eu não quero ver ninguém parado, dancem, cantem, vamos rodear e cercar Meca!
A imprensa logo surge em polvorosa ávida por uma entrevista exclusiva com o rebelde do império. A polícia sempre ao lado do poder instituído já cerca os muros de Meca, preparando sua invasão impura e violenta.
Foi quando ao som de “Another Brick In The Wall” do Pink Floyd, que João ouviu sonolento sua Maria gritando:
-Acorda João tá na hora de ir pro trabalho! Já são 4 da manhã!
Com frio, e empunhando seu guarda-chuva, João não parecia o mesmo naquele alvorecer. Despede-se de Maria como fazia todas as manhãs, e segue seu rumo em direção a Meca, com a devoção e a fé de quem necessita de um milagre por dia.
Sorria ao lembrar do seu último trailer, da projeção inconsciente dos seus maiores anseios, e cantarolava canções que naquela madrugada representavam em seu universo a plena liberdade!
João morreu na trágica tarde daquela sexta-feira de janeiro. Ele foi tragado pelo chão no metrô Pinheiros em São Paulo. Foi traído pela cobiça humana, pelo desafeto e desamor ao próximo, pela sagacidade do pequeno grupo que continua a comandar e a usurpar os trabalhadores da grande Meca!