Na
pós-graduação em jornalismo cultural - ensaiei um monografia sobre a Revista Bizz, que de certa forma
possuiu sua importância na história da música popular no Brasil. No final de
cada edição existia a seção “Discoteca Básica” sempre trazendo um texto sobre
algum disco clássico do rock, pop, jazz, samba, ou MPB.
Bateu
saudade e aqui presto a minha homenagem a essa Revista - reproduzindo o texto sobre o disco maravilhoso de Marvin Gaye (What's
Going On), de autoria do jornalista José Augusto Lemos -vale a pena a leitura!
Discoteca
Básica – Revista Bizz – (Edição 39,Outubro de 1988)
Marvin Gaye
What's Going On (1971)
Quando, em
85, o staff do NME elegeu este "O Melhor LP de Todos os Tempos",
houve alguma surpresa e nenhuma contestação. Afinal, a primeira coisa que se
pode dizer sobre o disco é que nunca houve tamanha síntese - gospel,
rhythm'n'blues, jazz e doo-wop na mútua fertilização de uma soul music 24
quilates e 1.001 filigranas.
Marvin Gaye
atravessara a década de 60 como um curinga no celeiro/linha-de-montagem da
Motown - além de gravar como cantor, participava aqui e ali como compositor,
arranjador, produtor e instrumentista (além de piano, toca bateria em vários
dos hits das Supremes). Todos os contratados da gravadora tinham, porém, de se
encaixar no rígido molde pop ditado e concebido por Berry Gordy Jr. Do
repertório ao vestuário, passando por aulas de dicção e "boas
maneiras", todas as "arestas" de negritude eram aparadas em nome
de um romantismo platônico e doce (mas nunca meloso). O transe carnal dos blues
e espiritual do gospel ainda estava lá, mas em baixíssimos teores.
Com essa
fórmula, Gordy - tendo iniciado seu selo independente a partir de sua loja de
discos - tomou conta das eletrolas e radinhos de pilha do universo. Pop
clássico, eterno - mas uma camisa-de-força para talentos como Marvin Gaye e
Stevie Wonder, cujo potencial só seria revelado no começo dos anos 70, quando
conquistaram sua autonomia dentro da gravadora.
What's Going
On foi a primeira batalha ganha nessa guerra e custou todo o cacife do cantor.
O lançamento atrasou alguns meses porque a Motown não queria editá-lo de jeito
nenhum, alegando que as músicas (a) eram longas demais; (b) não tinham começo,
nem meio, nem fim; (c) não falavam de "amor" , e sim de religião,
política, drogas, ecologia. Marvin ameaçou não gravar mais uma nota sequer pela
gravadora, e fez pé firme. Ganhou estourando a banca. Três das faixas - a
título, mais "Mercy, Mercy Me" e "Inner City Blues" -
viraram hits singles e, até hoje, as vendas do LP somam oito milhões de cópias
só nos EUA.
Venceu,
assim, a visão de um gênio que confessou ter passado a segunda metade dos 60
atormentado com a "irrelevância" do que estava gravando, diante da
revolução de consciência que ocorria no mundo e do surgimento do selo Stax,
afiando todas as arestas que a Motown limara. Dirigindo-se, desde os primeiros
sulcos, aos "brothers" e "sisters", Marvin compõe um
manifesto panorâmico da vida no gueto - pobreza, violência e drogas - antes de
atacar as "questões universais" que tinham arrepiado a diretoria da
Motown.
Musicalmente,
não existe nada mais doce. As faixas se interligam numa só levada, lânguida e
hipnoticamente esticada numa espécie de suíte. Tudo flui numa textura de cordas
e metais que Paddy McAloon, do Prefab Sprout, definiu como "Mozart de
patins". Marvin não escrevia, mas contornou o problema gravando fitas e
fitas assobiando as frases dos violinos, transcritas então pelo regente/orquestrador
David van DePitte. Produzido pelo próprio cantor, o disco exibe uma maestria
instrumental certamente assimilada no trabalho com Norman Whitfield, que um dia
ainda será reconhecido como um dos maiores gênios da música do século XX. Sua
entrada na Motown como compositor/arranjador/produtor redefiniu o pop como a
marca registrada da gravadora, principalmente com os Temptations. Com Marvin,
desenvolveu o monumento "I Heard It Through the Grapevine", o que já
bastaria como credencial. Em What's Going On, porém, Marvin mostra que já não
precisava dele, nem de ninguém. Os vários canais de gravação são utilizados num
show vocal, algo como um grupo doo-wop de um homem só, em contracantos e
harmonias que talvez só Sam Cooke poderia igualar, houvesse em sua época tecnologia
para isso.
José Augusto Lemos
Vitrola: Marvin Gaye - What's Going
On
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