quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Um Dia em OZ



Ainda me lembro aos três anos de idade
O meu primeiro contato com as grades
O meu primeiro dia na escola
Como eu senti vontade de ir embora
Fazia tudo que eles quisessem
Acreditava em tudo que eles me dissessem
Me pediram pra ter paciência
Falhei
Gritaram: - Cresça e apareça


(O Reggae- Renato Russo)

Uma das cenas inesquecíveis do cinema foi imortalizada por Judy Garland em O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, MGM – EUA 1939), exatamente quando sua personagem Dorothy ao lado de seu cão Totó (que curiosamente era uma cadela na vida real) entoa de maneira comovente a canção “Over The Rainbow”.

Somewhere over the rainbow
Way up high
There’s a land that I heard of
Once in a lullaby
Somewhere over the rainbow
Skies are blue
And the dreams that you dare to dream
Really do come true (…)

Este filme sempre me intrigou. Talvez por ter sido rodado trinta anos antes da minha chegada ao mundo. Prefiro entanto creditar esse fascínio ao fato de sua narrativa conter um subtexto recheado de conflitos existenciais que forçam o ser humano a realizar a travessia da ponte da vida dos sonhos infantis para a margem estreita e árida do mundo adulto. O conhecido ritual da passagem.

Você pode indagar: mas qual é o elo entre Renato Russo, Judy Garland ou Dorothy (a atriz ficou tão marcada pelo filme que nunca mais se livrou da sombra de sua personagem mais famosa), e o mundo de OZ?

Aqui entra em cena o escritor indiano Salman Rushdie – aquele mesmo que escreveu o livro Versos satânicos (1989), que causou controvérsia no mundo Islâmico devido a este livro ter sido considerado ofensivo ao profeta Maomé. Em 14 de Fevereiro de 1989, a fatwa ordenava a sua execução proferida pelo Aiatolá Ruhollah Khomeini, líder do Irã, chamando o seu livro de "blasfêmia contra o Islã". Para além disso Khomeini condenou Rushdie pelo crime de "apostasia" - fomentar o abandono da fé islâmica - o que de acordo com a Hadith é punível com a morte. Isto porque Rushdie comunicava através do romance que já não acreditava no Islã.

Khomeini ordenou então a todos os "muçulmanos zelosos" o dever de tentar assassinar o escritor, e os editores do livro. Devido a perseguição Rusdhie foi forçado a viver no anonimato durante mais de uma década.

O autor indiano escreveu um ensaio intitulado “The Wizard Of Oz” parte integrante da coleção British Film Institute – Classics Series – (1992). Nele Rushdie confidencia que em sua infância ao assistir pela primeira vez “O Mágico de Oz” ainda em Bombaim, na Índia, sua vida começou a ganhar um novo sentido: ” O mágico de Oz (o filme, não o livro, que não li quando menino) foi minha primeira influência literária. Mais do que isso: lembro o que senti quando foi aventada a possibilidade de freqüentar escola na Inglaterra, algo tão excitante quanto qualquer viagem para além do arco-íris”.

O que torna a leitura deste rápido ensaio interessante é o ponto de vista peculiar de Rushdie acerca da obra cinematográfica dirigida por Victor Fleming – que abandonou as filmagens antes de seu final para rodar outro clássico “E o Vento Levou” também lançado em 1939. O filme é uma adaptação para o cinema do livro intitulado “The Wonderful Wizard of Oz” de autoria de L.Frank Baum, lançado originalmente em 1900. Frank Baum teria batizado seu mundo mágico inspirado pelas letras O-Z da última gaveta de seu arquivo particular.

Baum foi um sujeito que conheceu a fama e a desgraça em apenas duas décadas. Quando morreu em 1919 nem sonhava que vinte anos depois parte dessa história ficaria tão conhecida.

Após um tornado na cinzenta Kansas (no filme a vida em Kansas é retratada em preto e branco), Dorothy vai parar com sua casa e seu cachorro na fantástica Oz, onde as coisas são coloridas, bonitas e mágicas. Porém, o seu maior desejo é retornar de volta para casa, para isso ela deve encontrar um mágico, que lhe mostrará como realizar esse seu desejo. Para chegar até ele, contudo, Dorothy viverá uma aventura inesquecível através do caminho de tijolos amarelos acompanhada por outras personagens como o Homem de Lata que deseja possuir um coração; o Leão Covarde em busca da coragem dos seus ancestrais; e o esperto Espantalho que nunca é levado a sério. Essa é a sinopse mais rasa e óbvia da película.

A leitura de Rushdie traz um novo olhar para essa história que curiosamente foi rescrita para o cinema pelas mãos dos escritores Noel Langley, Florence Ryerson e Egar Allan Woolf, até alcançar a sua versão final. Aliás, no ensaio o autor indiano conta um pouco das tumultuadas histórias de bastidores – algumas bem tristes e bizarras, outras quase inacreditáveis tamanha as coincidências – como o fato do ator Frank Morgan que interpretou o Professor Marvel e o Mágico de Oz ter usado em cena uma sobrecasaca comprada em uma loja de roupas usadas que havia pertencido a nada mais nada menos que L.Frank Baum! (acredite se quiser!).

Mas qual é a visão diferenciada de Salman Rushdie?

Aqui transcrevo o trecho que julgo primordial para compreender que por trás de uma fábula que evoca uma suposta segurança fornecida pela família como na cena final quando Dorothy diz textualmente, “there’s no place like home” [Não há lugar como o nosso lar], pode existir um outro ideal mais convincente para o filme:

“O Mágico de Oz é um filme cuja força motriz é a inadequação dos adultos, mesmo dos adultos bons. No início do filme, a fraqueza deles força uma criança a assumir o controle do próprio destino (e do de seu cachorro). Assim, ironicamente, ela começa o processo de se tornar adulta também.

A jornada de Kansas a Oz é um rito de passagem de um mundo em que os pais substitutos de Dorothy, tia Em e tio Henry, não têm a capacidade de ajudá-la a salvar seu cachorro, Totó, da saqueadora Miss Gulch para um mundo onde as pessoas são do seu tamanho e no qual ela nunca é tratada como criança, mas sempre como heroína.

Ela conquista esse status por acaso, é verdade, não tendo desempenhado papel algum na determinação com que sua casa esmaga a Bruxa Má do Leste; porém, ao final da aventura ela, sem dúvida, cresceu o suficiente para calçar aqueles sapatos - aqueles famosos sapatos de rubi. "Quem haveria de dizer que uma menina como você iria destruir a minha bela perversidade?", lamenta a Bruxa Má do Oeste enquanto derrete - um adulto que se torna menor que uma criança e deixa seu lugar para ela. Enquanto a Bruxa Má do Oeste "diminui", vê-se Dorothy crescer.

A meu ver parece mais satisfatória essa explicação do poder recém-conquistado de Dorothy sobre os sapatos de rubi do que as razões sentimentais fornecidas pela inefavelmente chocha Bruxa Boa Glinda, e depois pela própria Dorothy, naquele final enjoativo que considero pouco fiel ao espírito anárquico do filme”.

Aqui então traço um paralelo entre a letra de Russo e a aventura de Dorothy Gale [ventania em inglês]. O cinza monocromático da Kansas pré-tornado não difere muito do deslocamento social causado a uma criança em seu primeiro dia na escola. E a inadequação dos adultos em relação às verdadeiras necessidades de uma criança não destoa nem um pouco da ficção para os acelerados dias do século 21.

Na leitura de Rushdie a Dorothy de Kansas age ainda como uma criança, ou seja, de maneira imatura: “Tia Em está passando a descompostura que é o prelúdio de um dos momentos imortais do cinema. Você sempre fica aflita à toa...vê se acha um lugar onde não arranje problemas! Então Dorothy pergunta a seu cão: Algum lugar onde não existam problemas. Você acha que existe um lugar assim, Totó? Deve haver”. Em seguida ela canta “Over The Rainbow” o hino que celebra a fuga, a busca por um outro lugar no mundo, em oposição ao desejo humano de fincar raízes.

Já quando se depara com os problemas na colorida Oz, essa mesma menina os enfrenta como uma nova atitude. Dorothy amadureceu. Cresceu!
Ao final do ensaio o autor nos brinda como uma visão mais real do que representaria um lugar como Oz para Dorothy:

“Então Oz finalmente tornou-se o lar; o mundo imaginado tornou-se o mundo real, como se torna para todos nós, porque a verdade é que tão logo deixamos para trás os lugares de nossa infância e começamos a construir nossas vidas, armados apenas com o que temos e somos, compreendemos que o verdadeiro segredo dos sapatinhos de rubi não é que “não há lugar como nosso lar”, mas, antes, que não existe mais tal lugar como o lar:salvo, é claro, o lar que criamos, ou os lares que são criados para nós, em Oz: que é em qualquer parte, e em toda parte, mas não no lugar de onde começamos”.

O adulto que nega a uma criança a importância da mesma para sua vida, está criando um ser humano traumatizado e partido pela dor da negligência! Não ouvir, ou melhor, não estar o suficientemente desarmado para se abrir ao mundo e dificuldades de uma insegura criança é o mesmo que projetar uma casa sem os seus alicerces.

E quantas crianças cresceram sem conseguir ultrapassar o ritual da passagem à maturidade pela inabilidade dos seus responsáveis? E quantos adultos ainda estão peregrinando pelos divãs psiquiátricos a procura dos poderes mágicos de seus sapatinhos de rubis?

“Me pediram pra ter paciência/Falhei/Gritaram: - Cresça e apareça!”.

Oz sempre esteve dentro de nós; mas para alguns ainda não havia chegado o dia do vendaval; o dia em que o preto e branco torna-se colorido e a vida então ganha um saboroso novo sentido, e com uma surpreendente força real!

Trilha Sonora
Artista: Judy Garland
Música: Over The Rainbow

Um comentário:

Nick disse...

Gostei desta sua reflexão. De verdade é muito difícil abandonar a infância, por mais que cresçamos e por mais que tenhamos metas e forças pra atingir estas metas, a vontade de voltar atrás persiste. Muitos ficam presos a ela e como vc falou, em divãs psiquiátricos tentando procurar algo que perderam e que não terá retorno. Muitos adultos, pais, responsáveis não tem noção da importância dessa fase e que ela se prolonga pro resto de nossas vidas.