Quem me dera, ao menos uma vez,
Acreditar por instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes.
O misantropo doutor Gregory House, incorporado pelo ator inglês Hugh Laurie, não é exatamente um médico convencional. Não tente em vão arrancar-lhe um sorriso fácil, ou uma lágrima, apenas por abraçá-lo ou beijá-lo com afeto.
House é uma intrigante personagem que não consegue esconder a verdade mais cruel e sombria de cada ser humano, pois afinal de contas todos nós um dia por algum motivo iremos mentir.
Nefrologista e Infectologista, House é viciado em Vicodin – droga que faz uso para suportar as dores causadas por uma lesão em sua perna direita – o que lhe obriga no uso de uma bengala.
Foi na investigação médica para casos de diagnósticos difíceis que o médico ranzinza e rabugento encontrou refúgio para fugir de suas dores pessoais.
Juntamente com uma equipe de jovens médicos, Cameron, Chase e Foreman, e utilizando-se de um método socrático de dedução (lista sintomas em um quadro branco) House e seus colegas vivenciam a cada episódio uma frenética corrida contra o tempo em busca de cura para os doentes do fictício Princeton-Plainsboro Teaching Hospital.
Dr.House é uma daquelas alegorias que a ficção televisiva tenta nos cativar de quando em quando em troca da nossa audiência diária.
O que fascina nessa personagem quase impenetrável, é a sua escancarada condição humana: a razão triunfante que sempre afoga qualquer possibilidade plausível de assistir à transfiguração das emoções humanas escondidas em House.
Ele é a representação fiel da irrealização humana. House somos nós quando o mundo nos pressiona a sermos quem não podemos ser; a sentir aquilo que não conseguimos materializar enquanto sentimento. House em primeira instância sou eu e você quando nada do que fazemos na vida dá certo – ou quando fura um pneu do carro na calada da madrugada em algum lugar pra lá de deserto.
Nesses momentos invariavelmente falta-nos fé e, sobra-nos teimosia.
No episódio “Autopsia”, ele se vê as voltas com uma garotinha, Andie, em tratamento contra um câncer terminal. Logo seu ceticismo, seu mau humor, seu peculiar sarcasmo virão à tona. Seus olhos azuis irão se arregalar quando seu amigo, o oncologista James Wilson, contar que Andie é uma garota corajosa e, que mesmo em situação desfavorável não deixa de consolar e encorajar sua mãe com dignidade.
House não perde a oportunidade para ser mais uma vez intragável:
- Não vá pondo todas as crianças com câncer num pedestal. Algumas delas são covardes e medrosas. Pare de idolatrar as pessoas.
Mais tarde Wilson perde a paciência quando House pede consentimento (como se ele fosse alguém obediente a regras) para assistir o momento em que o amigo irá informar Andie que a sua luta pela vida está terminando. A cena, no entanto, gera maior curiosidade e desconfiança em House, já que Andie não fraqueja mesmo frente à sua sentença de morte.
Antes House já havia proibido a Dra. Cameron de ficar perto de Andie:
- Você se envolveria com a garotinha moribunda.
Cameron é antítese de House. Crédula, generosa, delicada, centrada, romântica, sempre se comove com os dramas pessoais de seus pacientes envolvendo-se em certo grau, gerando entre ela e House uma constante tensão – fronteira entre respeito e paixão.
É dela que ouvimos em um outro episódio a frase que por si só traduz muito a respeito da série de TV:
- A ignorância é uma bênção.
Mas House é um médico persistente (o que atenua em parte suas fraquezas) e desconfia que um coágulo no cérebro de Andie esteja a matando antes da hora.
Então invade a sala da Doutora Cuddy para perguntar se é permitido uma necropsia em alguém ainda vivo. Em seguida convence Wilson que é preciso informar Andie sobre o procedimento exploratório na busca do coágulo, mero pretexto para confrontar uma vez mais sua incredulidade em relação às virtudes de uma garotinha de nove anos prestes a morrer.
É por meio de um diálogo tocante que a cena denuncia uma batalha aberta entre fé, esperança e bondade, versus, razão, ceticismo e, cinismo.
House – O exame de amanhã pode durar 10 horas. Na sua condição, você pode não resistir.
Andie – Minha mãe pesquisou bastante.
House – O que você acha? Se maturidade for medida por quanto tempo ainda temos e não pelo tempo que vivemos, quem decide é você.
Andie – Não tenho escolha, certo?
House – Posso lhe dar uma.
Andie – Eu quero melhorar.
House – Você tem câncer. Seu eu curá-la agora...
Andie – Terei um ano.
House – Um ano disto. Muita gente não ia querer isso. Muita gente ia querer que acabasse logo.
Andie – Está me perguntando se quero morrer? (indignada).
House – Ninguém quer morrer. Mas você vai morrer. A pergunta é como. O quanto vai sofrer e por quanto tempo. Estou perguntando se quer que o sofrimento acabe.
Silêncio profundo em breves segundos...
Andie – O que diria à minha mãe?
House – Eu lhe daria 10 ótimas razões para não realizarmos o exame.
Andie – Não posso abandoná-la só porque estou cansada.
House – Mas também não pode ficar.
Andie – Mas ela precisa de mim.
House – A vida é sua. Não pode fazer isso só por ela.
Andie – Eu a amo (chorando).
Ao final o coágulo é descoberto e retirado, permitindo a Andie uma sobrevida de um ano. Na penúltima cena do episódio, Andie, está no saguão de entrada do hospital despedindo-se dos médicos para ir para casa. Aproxima-se então de House que logo dispara:
- Não vou beijar você não importa o que diga. (Uma referência a um fato anterior ocorrido entre Andie e o Dr. Chase).
Andie apenas sorri e diz:
-O dia está bonito lá fora. Devia ir dar uma caminhada.
Então ela o abraça e parte, deixando-lhe imóvel, perplexo e pensativo.
Na sequência vemos House paquerando algumas motocicletas e realizando um test drive por belas paisagens, desafiando os seus próprios limites, sua maneira de lutar bravamente contra seu maior inimigo: ele mesmo.
A incredulidade de House é a metáfora de um novo mundo sem utopias, habitado por bilhões de tuberculosos espirituais, um mundo cada vez mais cínico em relação à própria humanidade. Já Cameron sinaliza a luz no fim do túnel para as pessoas de boa fé.
Alguém disse certa vez que não são as virtudes que nos humanizam, mas sim os vícios.
Aqui cito então as palavras do poeta Paulo Leminski, “os muito cínicos que me desculpem, mas fé é fundamental. E para ter fé, é preciso uma boa e corajosa dose de burrice”. O artigo intitulava-se “Mais Burrice, Pessoal”. A ignorância neste caso, pode mesmo ser uma bênção.
Acima, Ruffus Wainwright, interpreta sua versão para a portentosa “Hallelujah” do mestre Leonard Cohen, durante concerto no Central Park em Nova Iorque.
3 comentários:
os personagens e os pacientes da série, nós leitores desse blog, toda humanidade...os homens vivem a tentativa, através dos mitos de narciso (transformação) e da fênix (resurreição), de um eterno controle inconsciente sobre a morte...nós buscamos, inconscientemente, uma eterna "regênesis". cada um do seu modo. com mau ou bom humor. todos buscam a regeneração.
a ignorância plena, principalmente no mundo atual, é para poucos. assim, mesmo que façamos de conta que somos distiuídos de um prévio conhecimento sobre as coisas dessa terra, estamos designados a um novo sofrer. o sofrimento de descobrir que não podemos dissociar quando e como queremos.
não existem bençãos para o homem que não aquela da busca pela Verdade. tentar viver com Ela (a Verdade) é nosso única chance de atingirmos uma felicidade eterna (por incrível que pareça repleta de sabedoria e distituída de qualquer tipo de ignorância).
Deus é lindo e ainda nos concede o dom de amar!
como é que está escrito no clip do youtube? "eu vivia sozinho antes de conhecer você"...é verdade. aconteceu...
O amigo anônimo afirmou que a eterna felicidade só é alcançada mediante a sabedoria e destituido de ignorância...será? Às vezes me pergunto diante de tanta opção de acesso a informação, se não é melhor não ter alguns tipos de conhecimento(o que pode ser considerado ser sábio). Queria não ter conhecimento da politicagem no Maranhão, do sofrimento que esse povo está passando agora... e me questionar por que o brasileiro do sul é melhor que o do nordeste? cadê a comoção geral que aconteceu quando das catástrofes em Santa Catarina? É...realmente não somos importantes. Nesse caso, me recolho a minha ignorância.
é exatamente isso que vc escreveu acima que tentei enfatizar em minha postagem: "podemos nos recolher a uma ignorância" diante, por exemplo, do que vc comparou(chuvas, discrinação, etc.). recolhe-se algo que a gente, felizmente ou infelizmente, tem... no caso, o conhecimento de algo. recolhe-se esse conhecimento. mas, se não sofremos de alterações da memória, jamais poderemos esquecer o conhecimento previamente adquirido. mesmo que seja por "osmose" (com a globalização tem sido muito assim). não temos escolha. a gente nem faz tanta questão de saber. mas, quando "acorda" já está sabendo.
em relação à sabedoria, fiz referência àquela que nenhum homem possui. somos completamente ignorantes em relação a essa sabedoria. assim, não seremos felizes plenamente antes de abraçá-la. a felicidade plena, uma referência à benção do título da postagem, não está nem na sabedoria humana e nem na ignorância humana. aliás, é bem saudável não ser totalmente feliz/abençoado nessa terra repleta das mazelas como as descritas pelo meu chará anônimo.
o autor do blog fez referência a leminski. lembrei de uma outra citação dele: "fiz um trato com meu corpo: nunca fique doente. se vc quiser morrer eu deixo". e haja mito de narciso e da fênix!!! tentamos, em vão, ter um controle sobre a morte. ela virá. como foi ordenado: morrerás! morreremos!
Postar um comentário