Nunca houve no cinema um sorriso meigo e, doce como da belga Audrey Hepburn.
Sua elegância, seu rosto delicado, sua simpatia e carisma, são conjunções raras atualmente em Hollywood.
Ainda me lembro com detalhes do outono de 1997. Uma oportunidade rara que se transformou numa experiência inesquecível.
O extinto Cinesesc da Rua Augusta estava reprisando “Breakfast at Tiffany's”, (1961), e isso apenas por alguns dias.
Aproveitei uma folga do trabalho durante a semana e fui ao encontro de Audrey, infelizmente o único na sala escura com uma grande tela.
E o cinema de escuro não tem nada, pois ilumina um pouco da nossa escuridão cotidiana.
Em “Breakfast at Tiffany's”, direção de Blake Edwards, roteiro de George Axelrod, baseado no conto do escritor Truman Capote, Audrey é Holly Goolightly, uma prostituta que mora em Nova Iorque após um envolvimento com um gangster. Em sua rotina efêmera um vizinho, Paul Varjak (George Peppard), um escritor tentando alcançar reconhecimento para seu talento, irá alterar seus planos.
O maior sonho de Holly é casar-se com um milionário. Eis que surge então o brasileiro José da Silva Pereira (José Luis de Villalonga), um fazendeiro rico do Brasil.
A seqüência final revela o quanto Holly tentou fugir do inesperado, do amor. Embora tenha um ar bem clichê hollywoodiano, a cena possuí em seu diálogo e, fora dele, a essência do romance de Capote.
PAUL – Lá se foi a América do Sul. Bom, você não foi feita para ser a rainha dos pampas, mesmo. (Para o taxista) Hotel Clayton.
HOLLY – Idlewild.
PAUL – O quê?
HOLLY – O avião sai às 12 e pretendo estar a bordo.
PAUL – Holly, você não pode.
HOLLY – Et pouquoi pas? Não vou atrás do José, se é isso o que está pensando. Na minha opinião, ele é o futuro presidente de lugar nenhum. Porque deveria desperdiçar a passagem? Além do mais, nunca fui ao Brasil.
Ele a observa em silêncio.
HOLLY – Por favor, querido, não me olhe assim. Eu vou de qualquer jeito. Tudo o que querem de mim é que eu deponha contra Sally. Ninguém tem a mínima intenção de me processar. Eles nem têm a mínima chance. Esta cidade acabou para mim, pelo menos por enquanto. Às vezes, a fama pode arruinar a pele de uma mulher. Devem ter montado forcas para mim em toda a cidade. Sabe o que pode fazer por mim? Telefone para o New York Times. Quero que me envie uma lista dos 50 homens mais ricos do Brasil. Os 50 mais ricos!
PAUL – Holly, não vou permitir isso.
HOLLY – Não vai permitir?
PAUL – Holly, estou apaixonado por você.
HOLLY – E daí?
PAUL – “E daí”? Isso chega. Eu a amo. Você me pertence.
HOLLY – Não. As pessoas não se pertencem.
PAUL – Claro que sim.
HOLLY – Ninguém vai me pôr numa jaula.
PAUL – Não quero colocar você numa jaula. Quero amar você.
HOLLY – É a mesma coisa.
PAUL – Não é, não, Holly.
HOLLY – Não sou Holly! Não sou nem Lula Mae! Não sei quem sou! Sou como o Gato, somos dois coitados sem nome! Não temos dono, nós nem pertencemos um ao outro! (para o taxista) Pare o táxi!
O carro para na entrada de um beco, enquanto cai uma chuva torrencial. Ela abre a porta.
HOLLY – (Para o Gato) O que acha? Parece ser o lugar certo para um cara durão como você! Latas de lixo, ratos por toda a parte… Suma! Disse para ir embora! Se manda! (Bota o Gato para fora e fecha a porta) Vamos!
Paul não acredita no que aconteceu. Tira uma nota do bolso.
PAUL – Motorista, pare aqui.
O carro para e ele sai, mas antes de fechar a porta e ir embora, se vira para Holly.
PAUL – Sabe qual é o seu problema, “senhorita Seja-lá-quem-for”? Você é covarde. Você não tem coragem. Tem medo de encarar a realidade e dizer: “Ok, a vida é um fato. As pessoas se apaixonam”. As pessoas pertencem umas às outras porque é a única chance que têm de serem realmente felizes. Você acha que tem um espírito livre e selvagem e morre de medo de ser enjaulada. Bem, querida, você está na jaula que você mesma construiu. E não só em Tulip, Texas, ou na Somália: estará sempre nela. Não importa para onde corra, estará sempre trombando consigo mesma! (Tira do bolso uma caixinha) Pegue. Tenho carregado isso comigo há meses. Não quero mais.
Ele joga a caixinha no colo dela e vai embora. Ela abre a caixa e chora quando vê o conteúdo: um anel, simples brinde de uma caixa de biscoitos, no qual ele tinha mandado gravar as iniciais de ambos na joalheria Tiffany’s.
Quando as palavras “The End” decretaram o final da exibição, eu, que estava sentado bem à frente, olhei para trás e, presenciei um pouco da simbologia do cinema na vida das pessoas.
Era sem dúvida alguma o mais jovem felizardo naquela sala. Vi homens e mulheres de cabeças grisalhas e de feições enrugadas chorando, emocionados pela breve redenção de suas vidas, ou, apenas pelas lembranças já quase inatingíveis pela ação do tempo (sempre ele), instaurados naqueles minutos de plenitude.
Chorei junto, não havia nada mais belo a ser visto por alguém ainda inexperiente na arte de viver e amar.
Um comentário:
o autor do blog assemelha-se, ao descrever em que contexto apreciou essa cena, a um françois truffaut contemporâneo. como o critico do “cahiers du cinéma”, ele contempla o filme e se destitui da platéia, mergulha na tela, para depois voltar à platéia e apreciar os rostos perplexos das pessoas diante da poesia que um filme pode proporcionar. escolheu uma cena antológica do cinema mundial e interpretada por uma atriz imortal. capote (escritor de “breakfast at tiffany's”), ousado, aborda a prostituição feminina e masculina (paul também se prostituí) às claras (diante do falso moralismo americano). edwards, diretor do filme, presenteia-nos com uma adaptação repleta de passagens como a postada: eternas! a gente não cansa de ver a cena postada. o diálogo é um show à parte. a decoberta, feita por holly, que ela e o gato são muito parecidos (sem nomes, sem rumos, sozinhos) e que ela se carregaria junto com ela mesma (em quaisquer lugares que fosse na terra) é compartilhada. todos nós temos um pouco dessa história. a trilha sonora, imortalizada por henry mancini, especialmente a das cenas “as coisas que nunca fizemos”, filmada em plena ruas do centro de ny, é uma delícia. goolightly, destituída do vestido preto básico que lançou-se como moda em todo planeta, sentada em sua janeta e de lenço na cabeça, cantando “moon river”, também compõe uma cena digna desse acervo. são tantas...
lembrei-me de uma amiga que conheci no inicío de 1994. Em 1996, ela decidiu comprar um flat no quarteirão da alameda jaú entre as ruas augusta e haddock lobo. assim, passava suas férias e folgas prolongadas praticamente em frente ao cinesesc. apaixonada por cinema e por pessoas, sempre assistia aos filmes que eram projetados na sala que já foi considerada a melhor do brasil. porém, como penélope esperava por ulysses, ela vivia uma eterna espera...passava horas sentada no hall de entrada do cinema a imaginar que seria por aquela rua, augusta, e por aquela porta, do cinesesc, que apreciaria a imagem da felicidade personificada pelo único ser humano que um dia despertou nela o desejo que uma tarde fosse uma eternidade...foi preciso perder muito e ganhar muito para que ela chegasse à conclusão: definitivamente as pessoas não se pertencem. no máximo, como escreve truman, elas podem se amar muito. ela um dia me escreveu que assistiu “tiffany's” no cinesesc. talvez, fosse um dos rostos apreciados pelo “nosso truffaut”. recentemente, soube que essa minha amiga morreu...foi-se com ela o rito da espera. foi-se uma odisséia particular...ela percebeu, antes da partida, que não era tão importante assim...a gente nunca é tão importante, como às vezes, a gente fantasia...
como é que audrey cantou mesmo? ah, foi assim:
moon river, wider than a mile
i'm crossin' you in style some day
old dream maker, you heartbreaker
wherever you're goin', i'm goin' your way
two drifters, off to see the world
there's such a lot of world to see
we're after the same rainbow's end, waitin round the bend
my huckleberry friend, moon river, and me
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