Essa é uma data muito comentada, pois há vinte anos morria na Itália o tricampeão mundial de F1 Ayrton
Senna da Silva.
Muito já foi dito e ainda será sobre aquele fim de semana triste de 1994 e, de tantas coisas lidas, uma em particular me chamou a atenção hoje, porque é um texto que gostaria de ter escrito.
Muito já foi dito e ainda será sobre aquele fim de semana triste de 1994 e, de tantas coisas lidas, uma em particular me chamou a atenção hoje, porque é um texto que gostaria de ter escrito.
O texto do jornalista Flávio Gomes intitula-se “Memórias de uns dias de maio”, e abaixo reproduzo a parte da qual penso que Flávio extrai o
lado mais humano de uma história tão triste. Flávio Gomes naqueles dias era
jornalista da Folha de São Paulo e da Rádio Joven Pan de São Paulo, ele cobria
toda a temporada da F1 já havia alguns anos.
Por sorte, Flávio conhecia uma médica que provavelmente
trabalhava no mesmo hospital para onde Ayrton havia sido levado naquele
domingo, digo por sorte, porque a médica italiana em questão era uma antiga
namorada sua de adolescência na cidade de Campinas.
A médica Maria Cristina Gervasi de fato trabalhava no IML de
Bolonha, local para onde o corpo de Senna e também do austríaco Roland Ratzenberger,
morto em um acidente em Ímola no sábado, 30 de abril durante os treinos de
classificação para o GP de San Marino, foram levados após atestadas as mortes.
“Encontrei a Cristina
algumas vezes depois daqueles primeiros dias de maio de 1994. Já não lembro bem
quando. Três ou quatro anos depois, talvez. Jantamos uma noite em Bolonha, num
belo restaurante numa colina, e em outra oportunidade visitei-a em Casalecchio,
onde fiquei comovido com um cantinho de sua casa onde havia na parede uma placa
de carro com o escudo da Portuguesa, algumas fotos nossas em porta-retratos e
pequenas lembranças de nosso namoro adolescente.
Nos falamos de vez em quando pelo Facebook. Ela se casou
novamente e divide o tempo entre a Itália e Zurique, de onde vem seu marido.
Acabou de ter um bebê e está feliz da vida. Esta semana, entrei em contato para
lembrarmos aqueles dias de 20 anos atrás.
Não foi uma conversa triste e melancólica. Médicos sabem
lidar melhor com certas coisas como a morte. Me escreveu:
Trabalhar como médico legista lhe permite ver a vida a
partir de um ponto de vista diferente. Ou, talvez, você pode apenas ver a sua
vida… Corremos atrás de nossos sonhos e ilusões, corremos de manhã à noite, e
quantas vezes nos perguntamos que o fazemos? No final, tudo é o resultado de
nossas escolhas. Há os que escolhem uma vida de rotina, tranquila, e há aqueles
que arriscam suas vidas, e fazem isso de modo bem consciente. E um dia o final
da corrida vem, vem para cada um de nós.
Os mortos são todos iguais, não há mortes de série A ou de
série B. Dois jovens saíram daqui há 20 anos com seus sonhos e suas esperanças,
tirando as esperanças e sonhos de milhões de pessoas. Era o que tínhamos aqui
no dia 1° de maio, no Instituto de Medicina Legal de Bolonha, onde eu cursava o
último ano de especialização em medicina forense.
Não sou daquelas que seguem os eventos esportivos, por isso
não sabia direito o que estava acontecendo quando me vi presa no trânsito da
Via Irnerius, incapaz de chegar ao Instituto.
Depois de muito tempo consegui
alcançar o portão vigiado pela polícia, que só me deixou entrar quando mostrei
minha identidade. Estacionei o carro no lugar de costume, em um pequeno recesso
logo atrás do portão de entrada.
Notei os rostos consternados e as lágrimas de dor. Me
lembro, na entrada para o necrotério, de várias pessoas que falavam com uma
cadência e uma musicalidade que me trouxeram lembranças doces e nostálgicas da
minha juventude. Eles falavam português e tinham a bandeira do Brasil nas mãos.
A entrada foi inundada com flores, flores em todos os
lugares, nunca vi tantas flores juntas, bilhetes, mensagens… Nesse dia, as
atividades normais do Instituto foram suspensas e ficamos na varanda observando
esse estranho fenômeno que se desenvolvia sob nossos olhos.
Os dois jovens pilotos estavam na ante-sala da câmara
frigorífica, e pareciam dormir. Senna tinha uma ferida costurada na parte
frontal da base do couro cabeludo, mas seu rosto estava sereno e já não
apresentava muito inchaço. Ratzenberger era de uma beleza típica do Tirol
Austríaco. Um belo rapaz. Senna, o grande campeão. Ratzenberger, o piloto que
fazia apenas sua terceira corrida. Ambos apaixonados pela mesma coisa, ambos
rapazes que fizeram do risco e da velocidade suas vidas, e que estavam ali na
nossa frente para mostrar como a existência é efêmera, a realidade concreta da
transitoriedade da vida.
Com alguns colegas , oramos por suas almas, que agora
corriam em direção a outros objetivos e para os seus entes queridos que
precisassem de ajuda e conforto. Pegamos algumas rosas e colocamos nas mãos dos
jovens pilotos antes do fechamento dos caixões. A rua estava cheia de pessoas
que se amontoavam nos portões. E de jornalistas à espera de notícias. Mas não
havia muito o que dizer.
Senna saiu em primeiro lugar, e centenas de pessoas com
gritos e aplausos acompanharam o caixão saindo do beco atrás do Instituto.
Aplaudiam um grande campeão que perdera a vida na Tamburello, deixando um
enorme vazio nos corações de fãs em todo o mundo. No dia seguinte, saiu
Ratzenberger. Em silêncio, sem aplausos, lágrimas ou câmeras de TV. Membros de
sua família chegaram e nós, do Instituto, o aplaudimos. Aplaudimos o rapaz
corajoso que perdeu a vida na busca de um sonho que nunca alcançou. Aplaudimos
com todo vigor aquele cuja fama não tinha despertado o clamor do povo.
Os mortos estão mortos, e eles são todos iguais. Não há
desculpas e/ou atenuantes para aqueles que “esqueceram” muito rapidamente que
por aquela corrida, naquele circuito, dois jovens rapazes haviam perdido suas
vidas. E que estavam viajando juntos na sua última corrida para a linha de
chegada.
Reunimos todos os buquês, colocamos tudo em vários carros e
levamos para o cemitério da cidade, que foi inundado de cores, doando uma
beleza fúlgida e fugaz, como fora a vida daqueles jovens pilotos, a túmulos
desbotados e esquecidos por suas famílias e amigos. Nesse dia, aqueles mortos
puderam rever as cores da vida e o fascínio da natureza, num sofrido
contraponto à realidade da morte e da dor”.
A descrição da doutora Cristina é bela e humanística, uma
das coisas mais lindas das quais já li sobre a vida, e claro, sobre a morte.
Vitrola:
Coldplay – Fix You (Live 2012 from Paris)
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