É uma fase de leituras, às vezes múltiplas, mas convexas. Degustando a saborosa crônica de Affonso Romano San’tanna intitulada “A Ilusão do Fim de Semana”, logo faço uma relação com o cânone teórico de Adorno sobre a industria cultural.
Nos dois casos, fica evidenciado que nós seres civilizados das grandes, médias e pequenas cidades perdemos a capacidade de mensurar nossa estupidez. Sim, porque o modo no qual a maioria de nós vive (ou será melhor dizer sobrevive) é permeado por uma estúpida seqüência de infelicidade coletiva. Se não vejamos:
“Há algo errado nisto. Onde havia florestas construímos cidades de concreto, asfalto e vidro. Ai vivemos. Ou melhor: trabalhamos. Mas como o lugar onde trabalhamos não é onde queremos viver, então no fim de semana rumamos para onde há floresta ou praia, onde, além do verde e do azul, se pode respirar. Chegamos. Acabamos de encostar o carro na garagem da casa de campo, fazenda ou do hotel nas montanhas. Chegar aqui não foi fácil. Duas, cinco, ás vezes dez horas de engarrafamento. O verde e o azul, lá longe ainda, difíceis de alcançar. E a gente ali na estrada entalado num terrível rito de ultrapassagem", descreve com certa dose de ironia o cronista.
Por sua vez, Adorno já advertia no século passado que, “o homem dentro da Indústria Cultural, não passa de mero instrumento de trabalho e de consumo, ou seja, objeto. O homem é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho”.
Neste labirinto onde sempre somos monitorados, nosso direito de escolha é relegado ao trivial direito do consumidor, já que não somos mais cidadãos, o que importa agora é o pré e o pós-venda. Marketing e ilusão confundem nossas massas perdidas na terrível tarefa de acreditar que tudo está bem, apesar do contrário, da infelicidade estampada em nossos outdoors internos, aqueles embutidos na minha, na sua, enfim, nas nossas mentes diariamente.
E vou lendo, conspirando contra minha própria desconfiança, e sigo pensando no show de Morrissey que se avizinha para breve, um outro espetáculo onde o "nós" representa apenas um joguete, apesar de, neste caso ser por demais agradável ver sobre o palco um bibliotecário que consegui a seu modo subverter a maré turva da industria do entretenimento.
Ainda assim prefiro ficar com o recado do cronista: “Há algo de errado nisto. E persistimos”.
Trilha Sonora
Música: Suedehead
Artista: Morrissey
2 comentários:
“enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu amavas. quando o vento do mar soprar nas folhas, Iracema pensará que é a tua voz que fala entre seus cabelos.
o doce lábio umedeceu para sempre; o último lampejo despediu-se dos olhos...
Poti amparou o irmão na grande dor. Martim sentiu quanto um amigo verdadeiro é preciososo na desventura...
o camucim que recebeu o corpo de Iracema, embebido de resinas odoríferas, foi enterrado ao pé do coqueiro, à borda do rio. Martim quebrou um ramo de murta, a folha da tristeza, e deitou-o no jazigo de sua esposa. a jandaia pousada no alta da palmeira repetia tristemente: - Iracema!"
...desde então os guerreiros potiguaras que passavam perto da cabana abandonada e ouviam ressoar a voz plangente da ave amiga, afastavam-se com a alma cheia de tristeza, do coqueiro onde cantava a jandaia. e foi assim que um dia veio a chamar-se Ceará o rio onde crescia o coqueiro, e os campos onde serpeja o rio...
...era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara.
muitas vezes ia sentar-se naquelas doces areias, para cismar e acalentar no peito a agra saudade...
...a jandaia cantava ainda no alto do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema.
TUDO PASSA SOBRE A TERRA".
ao ler a postagem nessa manhã, lembrei da passagem acima descrita e de como tudo, definitivamente, passa.
veio também à memória uma frase presente em duas obras do pessimista cineasta argentino Gaspar Noé que não cansa de proclamar “o tempo destrói tudo” em seus amargos filmes franceses “seul contre tous” e “irreversible”. Noé consegue ser mais melancólico que o dinamarquês Lars von Trier...
paradoxalmente, escrevendo nesse momento tive um sentimento de esperança e lembrei do belo filme que assisti ontem, “the artist”, do cineasta francês Michel Hazanavicius que rendeu, no festival de cinema de Cannes, o prêmio de melhor interpretação masculina ao excelente ator, também francês, Jean Dujardin.
“the artist” prevalece, em meio à desesperança, muito forte nesse momento. acredito que seja o tempo para agir e pensar com simplicidade na alma e no espírito. quero viver a capacidade de redenção dessa película. sem preocupações com possíveis cliclês. sem palavras pronunciadas. sem fala. sem, assim, sem...
indicado a nove Oscar, provavelmente “the artist” não levará nenhum. pouco importa. é um das obras mais lindas que vi no cinema (na verdade, é um hino de amor ao próprio cinema) e em sua simplicidade e inocência nos cativa.
o diretor opta, em meio a possível ruína da alma e da vida de um homem, pela capacidade de redenção que o ser humano só pode encontrar no amor. em todo tipo de amor. porém, que só Aquele chamado de Amor pode nos proporcionar de verdade... definitivamente... para sempre.
o filme ganhou inúmeros prêmios. entretanto, não precisa de nenhum. ele é um prêmio para os amantes do cinema e da vida.
esperança... não há nada de errado nisso e sinto que sempre é bom persistir.
afinal, a vida também é feita de sons:
…why do you come here
when you know it makes things hard for me?
when you know,
why do you come?...
…you knew I'd written about you?
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